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Texto: Sandrah Guimarães

Dezenas de pesquisadores, ligados ao Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha (REBIMAR),

investigaram a qualidade e os riscos para esse ambiente

Foto: Gabriel Marchi.

A Grande Reserva Mata Atlântica é um ‘organismo’ gigantesco que envolve mais de 2.7 milhões de hectares, sendo 2.2 milhões deles de área marinha. O território abriga o maior trecho contínuo remanescente deste bioma no mundo, em uma natureza exuberante e riquíssima, protegida em 66 unidades de conservação.

A região é foco de atuação do conjunto de cientistas envolvidos no Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha (REBIMAR), desenvolvido pela Associação MarBrasil com patrocínio do Governo Federal e da Petrobras. 

Os pesquisadores são ligados a instituições como Universidade Federal do Paraná (UFPR e CPP-CEM), Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Instituto Federal do Paraná (IFPR). Além de profissionais com longa experiência, o REBIMAR integra jovens cientistas, que desenvolvem dissertações e teses, e estagiários.

O trabalho começou em 2010 com o projeto de instalação de recifes artificiais para auxiliar a recuperação da biodiversidade marinha e dos estoques pesqueiros no litoral do Paraná. Desde então, o REBIMAR vem ampliando as frentes de estudo e ação, que atualmente envolvem manguezal, mero, tartaruga-marinha, raia-viola, tubarão-martelo, caranguejo-uçá, microplástico e educação ambiental. 

Ao longo desses 13 anos, o desafio dos cientistas foi unir as pesquisas e compreender como está a saúde única dessa exuberante região e das áreas de transição com o mar. “O REBIMAR são vários projetos trabalhando em conjunto. Isso nos trouxe várias discussões sobre como juntar todos esses elementos e entender todo o status de conservação da região olhando esses fragmentos”, explica André Cattani, coordenador geral do projeto. 

Com essa proposta de fazer um ‘Diagnóstico da Saúde Ambiental da Grande Reserva Mata Atlântica’, o REBIMAR alinha-se ao Plano de Ação Conjunta para a Saúde Única para 2022 a 2026, elaborado pela  Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), pela Organização Mundial de Saúde Animal (WOAH) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). 

O conceito de Saúde Única (One Health) tem recebido atenção nos últimos anos da comunidade científica devido ao aumento da frequência e gravidade das ameaças que afetam as interconexões entre a saúde de humanos, animais, plantas e o meio ambiente.

“Para pensar em como trabalhar a saúde do ecossistema no futuro, precisamos saber como está a saúde dele hoje, quais são os elementos e a condição da fauna e da flora, que serviços ambientais essa região está provendo e como as pessoas usam e se conectam com esses recursos ecológicos”, complementa Camila Domit, coordenadora técnica das ações com tartarugas-marinhas. 

Em pesquisas entrelaçadas, o REBIMAR compôs uma importante e inédita base de dados. Primeiro o projeto mapeou a região e levantou o máximo de informações científicas já existentes. Depois disso, foi preciso escolher alguns elementos que tragam indicadores de qual é a condição atual e como as mudanças estão ocorrendo ao longo do tempo. 

“A metodologia desenvolvida pelo REBIMAR para mapear a saúde geral de um território tão extenso é algo novo. O princípio de saúde única e a conexão de toda biodiversidade a esse contexto é o caminho que guia o REBIMAR”, enfatiza Cattani. 

Mapeamento dos manguezais

Foto: Gabriel Marchi.

Os manguezais foram profundamente avaliados nos últimos dois anos em frentes diferentes.  Pelo ar, um mapeamento por satélites e drones, em parceria com o Laboratório de Geoprocessamento e Estudos Ambientais (LAGEAMB – UFPR) levantou dados inéditos. Foram mapeados 48.8 mil hectares de manguezal, sendo 41% no Complexo Estuarino de Paranaguá (PR), 31% na região de Cananéia-Iguape (SP), 16% na Baía de Babitonga (SC) e 12% na Baía de Guaratuba (PR). 

“Percebemos uma diferença grande e negativa na Baía de Babitonga, infelizmente. Partimos então do pressuposto que os manguezais de lá podem estar com uma degradação maior, ao levar em conta o vigor da vegetação e outros fatores. Os resultados apontam que os manguezais da Baía de Guaratuba, de Paranaguá e da região de Cananéia-Iguape possuem índices próximos, apontando condições satisfatórias de conservação”, esclarece a geógrafa Laura Krama. 

Mapa: Laboratório de Geoprocessamento e Estudos Ambientais da UFPR (LAGEAMB-UFPR)

Já em Guaraqueçaba, os resultados surpreenderam o grupo porque apresentaram dados ‘menos saudáveis’ do que na região de Paranaguá que abriga o segundo maior porto do Brasil. “Fizemos vários outros testes e métodos e o resultado foi confirmado”, enfatiza a pesquisadora. 

Para o geógrafo Otacílio Lopes da Paz, mapear os manguezais em escala de detalhe facilita muito estabelecer padrões para contribuir com a conservação, o planejamento e até mesmo a restauração. “A expansão urbana e portuária, desmatamento, poluição hídrica e outras atividades humanas representam ameaças a esse ecossistema. Para lidar com essas pressões, é fundamental uma governança eficaz com aplicação da legislação ambiental, fiscalização, monitoramento, ordenamento territorial e melhorias no saneamento básico”, avalia. 

Pé na lama para conferir de perto a saúde dos manguezais

Foto: Gabriel Marchi.

Em solo, outros grupos do REBIMAR acompanham a saúde de espécies da fauna e da flora, priorizando lugares mais conservados. Uma equipe monitora e mede os mesmos troncos, as mesmas árvores e as mesmas áreas para entender a dinâmica do manguezal ao longo do tempo. 

“Um dado interessante é que temos registrado mais impactos naturais, o que mostra já estarmos num período de mudanças climáticas, com aumento de eventos extremos. Eu monitoro essas áreas desde 2001 e nesta época não havia tantos raios e vendavais. Isso se agravou de 2008 a 2011”, comenta Marília Cunha Lignon, coordenadora do Ecossistema Manguezal. 

Um dos espaços acompanhados foi atingido por um ciclone, em 2019. Quando a equipe chegou ao local, viu uma cena de destruição, com árvores arrancadas e muita vegetação morta. Apesar da cena triste, isso abriu a oportunidade única de acompanhar a recuperação da vegetação, ao longo dos anos. “Foi possível acompanhar o tempo da natureza e sua regeneração. Observamos que a recuperação dos manguezais é bem mais rápida quando o entorno é preservado”, diz Lignon.

O comparativo é possível porque a equipe acompanha outra área onde há um impacto constante da ação humana, em Iguape (SP). “Com o canal artificial de Valo Grande, observamos um aumento muito alto de necromassa, composta por árvores e troncos mortos. Não há recuperação natural porque o efeito não cessa. É o que chamamos de um evento crônico”, explica a pesquisadora. 

Quando foi aberto, no século 19, o canal tinha 4,4 metros de largura. Hoje, está com 300 metros gerando diversos impactos, com redução da salinidade e mortandade gigante de floresta de mangue ao longo do tempo. “Os dados da pesquisa apontam 102 toneladas de árvores e troncos mortos por hectare no Valo Grande 1 e 2. Em nenhum outro lugar tem tanta necromassa assim”.

Ajuda de pescadores e a identificação de espécies invasoras

Foto: Gabriel Marchi.

A contribuição dos pescadores foi fundamental para outra frente de pesquisa, a coleta periódica de amostras de juvenis de peixes e crustáceos em pontos de difícil acesso para cientistas. “Eles nos ajudaram muito porque conseguimos números grandes de amostras. Não conseguiríamos fazer a pesquisa sem a ajuda dos pescadores. Seria um custo financeiro e de tempo gigante, além dos fatores climáticos que são complicados, e muitas vezes nos impedem de ir até o local de coleta. Essa ‘ciência cidadã’ com a parceria dos pescadores foi essencial para melhores resultados”, comenta Cláudia Namiki, consultora de Ictioplâncton (ovos e larvas de peixes).

O trabalho feito em parceria com os pescadores, confirmou a presença de duas espécies invasoras inclusive em unidades de conservação: um peixe e um crustáceo, o que acendeu um sinal de alerta. “A grande quantidade dessas espécies é um indicador de desequilíbrio do ambiente”, ressalta a especialista.  

“As espécies invasoras competem por recursos e espaço com espécies nativas, muitas vezes expulsando animais de seu habitat. E os invasores tem vantagens competitivas porque não têm predadores naturais. Isso explica porque se reproduzem tão rápido”, explica Namiki.

 

Uma das espécies é o peixe Opsanus beta, espécie natural no Golfo do México e na costa dos Estados Unidos, O peixe-sapo, pelo nome popular, é resistente, territorial e agressivo. É possível que tenha chegado ao Brasil pela água de lastro dos navios. “Ainda é cedo para avaliar os riscos dessas espécies dominarem grandes espaços, é preciso antes entender os impactos que estão por trás dessa presença constatada”, afirma Namiki.

A outra espécie invasora identificada nas armadilhas, é o siri Charybdis hellerii, conhecido como siri-capeta. “Fiz o primeiro registro em 2010, na área do Porto de Paranaguá, desde então o bicho se estabeleceu por aqui e está se alastrando, os registros são cada vez mais numerosos. A única ação de controle está sendo feita pelo Terminal de Contêineres Paranaguá (TCP), mas a continuidade do monitoramento vai indicar se está sendo efetiva ou não”, afirma Cassiana Baptista Metri, coordenadora da fauna de manguezal.

 

O relato dos pescadores é que está cada vez mais abundante e, apesar de ter um tamanho médio, o gosto não é bom e tem pouca carne. “O principal problema dele no momento é a competição com as espécies nativas, mas se começar a competir com as espécies comerciais haverá um baita impacto socioambiental, uma vez que dificilmente se consegue erradicar esses invasores. O risco com o Charybdis hellerii é ameaçar a pesca do siri na Baía de Paranaguá”, alerta Metri. 

O siri-capeta é natural do Oceano Pacífico e a primeira introdução foi registrada no Caribe pela água de lastro e pelo casco dos navios. Atualmente há estudos que apontam que ele já se espalha mundialmente pelas correntes marítimas. 

Microplásticos

Foto: Gabriel Marchi.

Um assunto pouco estudado até então era a presença de microplásticos na Grande Reserva Mata Atlântica, especialmente na superfície da coluna de água. Uma parceria firmada com professores-pesquisadores do Instituto Federal do Paraná (IFPR) permitiu entender a sua distribuição e como eles coexistem com as espécies acompanhadas.

“Nem as unidades de conservação do litoral escapam dos impactos, o lixo não reconhece fronteiras. Já nas primeiras amostragens encontramos a presença de microplástico em todos os setores, com uma distribuição variada desde Antonina, na região próxima à Guaraqueçaba, até a desembocadura perto do Canal da Galheta e a Ilha do Mel”, informa Allan Paul Krelling, coordenador da pesquisa. 

Para o pesquisador, significa que há um estressor a mais para o ambiente. “As larvas e os juvenis dos animais que buscamos conservar estão sob um risco adicional com todos esses componentes plásticos que podem ser absorvidos”. 

A partir da dificuldade da importação de materiais de pesquisa, como a rede coletora, a equipe criou novas oportunidades com a criação de uma rede totalmente nacional para coleta de microplástico. Para importar a rede custaria cerca de 56 mil reais. A versão nacional custou menos de mil reais. 

A rede, batizada de NOIVA (Novo objeto de Investigação Ambiental), recebeu três premiações na 21ª Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace 2023), considerada o maior evento científico estudantil do Brasil. “A rede foi baseada em metodologia internacional, mas com baixíssimo custo de produção. Outras universidades já nos procuraram para usar o modelo nas pesquisas com microplástico”, comemora o oceanógrafo. 

Além disso, o professor comemora o grande envolvimento de alunos na pesquisa, estão diretamente envolvidos cerca de 30 estudantes do Curso Técnico em Meio Ambiente e do curso superior em Gestão Ambiental. “É a formação de recurso humano, com pessoas engajadas que olham a área de pesquisa e conservação como profissão”. 

Os resultados das análises indicam que a maioria dos microplásticos tem origem secundária, ou seja, degradaram de grandes itens. Isso mostra que a frente de atuação deve acontecer no macroplástico. “Isso dá uma diretriz para que as políticas públicas foquem em saneamento adequado, destinação dos resíduos sólidos das cidades. É preciso olhar para o descarte de grandes itens”. 

“Os dados dão também um novo panorama para as ações do Rebimar V que vai focar no lixo no mar de maneira geral, para entender as fontes de entrada e os fluxos a partir dos rios e outras fontes, abrangendo mais áreas da Grande Reserva Mata Atlântica”. 

Tartarugas marinhas como sentinelas 

O projeto monitora as Tartarugas-verde (Chelonia mydas), na região do Complexo Estuarino de Paranaguá, desde 2018. A escolha da espécie foi pelo fato dela ser uma sentinela, que reflete a saúde do ambiente onde ela está e as condições que afetam outras espécies, incluindo os recursos pesqueiros.  

As tartarugas que frequentam o litoral paranaense, em geral, são juvenis, entre dois e oito anos de idade e têm ficado longos períodos na região das Ilha das Cobras e na área mais interna do Estuário que é, de certa forma, positivo em termos de coleta de dados, mas negativo pela exposição a uma água mais contaminada da região portuária. 

“Temos observado um número cada vez maior de animais com Fibropapilomatose. O conhecimento científico tem nos demonstrado que a doença realmente é consequência de um ambiente mais degradado. Com a poluição, o animal fica imunodebilitado e mais exposto a uma propagação maior do vírus”, avalia a bióloga Camila Domit.

A Fibropapilomatose forma múltiplos tumores de pele e pode também afetar órgãos internos e a reprodução. A pesquisa comprova que essa condição de saúde das tartarugas tem piorado ao longo do tempo, com um ápice negativo em 2018, que coincide com o período das obras de dragagem de aprofundamento no Porto de Paranaguá. 

“São resultados importantes nesse contexto de saúde. Fala-se muito na dragagem como um potencial disseminador de contaminantes na baía e esses dados, de alguma maneira, trazem suporte científico, evidenciando a piora das condições ambientais na área neste ano, com maior prevalência da doença nas tartarugas marinhas. E foi o REBIMAR que nos possibilitou esse monitoramento”, ressalta a coordenadora da pesquisa. 

Alguns animais são capturados desde 2014, então há uma condição robusta para confirmar que há piora nas condições de saúde ao longo do tempo, com as tartarugas mais suscetíveis a doença. “Podemos dizer que as condições de saúde estão piorando, temos visto animais mais magros, doentes e com alterações no sistema imunológico, apresentando características de animais que estão cada vez mais estressados”. 

A especialista conta que algumas já estão até acostumadas com as ‘consultas’.  “Elas já vêm na rede tranquilas, dão o bracinho para a coleta de sangue, como se quisessem ser liberadas rápido.”

Outro aspecto importante aponta para a mudança na alimentação das tartarugas-verdes, resultado da disponibilidade de alimento e da qualidade do ambiente. “As tartarugas do litoral paranaense se alimentavam principalmente de grama marinha, um ecossistema muito nutritivo que é formado por uma grande variedade de espécies de fauna e flora e que são sumidouros de carbono importantes”, explica Domit. 

Mas no litoral, já restam poucas áreas de grama marinha, ambiente que foi muito alterado nos últimos anos. “Temos agora um grupo bem pequeno comendo grama. O restante dos animais passou principalmente a Ulva, uma alga verde muito presente em ambientes degradados pela ação humana. Isso não é bom. Só pela dieta da tartaruga já sabemos que tem alguma coisa errada no ecossistema”, conclui a pesquisadora. 

Com base nos resultados alcançados pelo Programa REBIMAR IV, o grupo de cientistas vai aplicar os preceitos de Saúde Única (One Health) e os indicadores adaptados da iniciativa internacional ‘Recifes Saudáveis para Pessoas Saudáveis’, aplicando a metodologia do Instituto Life para o estabelecimento de indicadores-chave que possam ser monitorados ao longo do tempo como forma de avaliação da saúde ambiental da Grande Reserva Mata Atlântica.